Quando pensamos em laboratório, logo nos vem à mente aquele espaço com microscópios, vidraria, equipamentos complexos, bancadas onde cientistas buscam responder a diversas questões da natureza e da sociedade. A noção de “laboratório vivo”, não corresponde à essa visão porque nele a dinâmica da vida no próprio espaço de investigação modifica a dinâmica da investigação científica e seus resultados. Mas, não é só isso. Mais que uma expressão de efeito, o conceito de laboratórios vivos inclui a transformação de cenários sociais por meio de processos de inovação dinâmicos entre diversos atores.
O HIDS está sendo concebido para atuar como um complexo de laboratórios vivos, com a intenção de se tornar um modelo internacional de distrito inteligente e sustentável (em seu sentido amplo). Um laboratório vivo é baseado em um conceito de inovação aberta, na cocriação, integrando processos de pesquisa e inovação dentro de um contexto de parcerias público-privadas e operando em ambientes/territórios e comunidades de “vida real”.
A noção de laboratório vivo (living lab) foi usada pela primeira vez no início dos anos 1990 em um experimento em um bairro na cidade de Filadélfia, Estados Unidos, em que alunos propuseram soluções reais para problemas da comunidade. Descrita em artigo científico, essa experiência em que os estudantes trabalharam com variadas técnicas de muitas disciplinas com a finalidade de oferecer soluções de larga-escala foi chamada de “laboratório vivo”. Desde então, o conceito animou discussões entre universidades, gestores e atores do campo da inovação. Em 1995, foi utilizado para observar os padrões de vida dos usuários de uma casa inteligente (Place Lab) em estudo desenvolvido pelo arquiteto e professor William J. Mitchell (1944-2010), do laboratório MIT Media Lab da Escola de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Na Europa, a primeira rede com o nome Living Labs-Europe surge a partir dos anos 2000, com experiências da vida prática sob a liderança de uma pequena consultoria dinamarquesa, a Interlace.
Rede de laboratórios vivos – O conceito é oficialmente introduzido em 2006, quando o Conselho da União Europeia (UE), então sob presidência finlandesa, lança a Rede Europeia de Living Labs (European Network of Living Labs – ENoLL). Na ocasião, o Manifesto de Helsinque aponta os laboratórios vivos como um primeiro passo em direção a uma mudança de paradigma para todo o processo de inovação. Seguem-se, então, diversos documentos de política estratégica que destacam aspectos humanos e sociais para um melhor design e implementação de projetos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P,D&I).
Posteriormente, a rede ENoLL começa a receber financiamento como parte da estratégia da constituição de cidades inteligentes por toda Europa e hoje laboratórios vivos mais consolidados estão em diversas cidades europeias. Entre os criados em 2017 estão os de Gante (Bélgica), Barcelona (Espanha), Helsinque (Finlândia), Luleå (Suécia), Manchester (Reino Unido) e Sophia Antipolis (França). Em 2008 surgem os laboratórios vivos em Palermo (Itália), Trento (Itália) e Lisboa (Portugal). Em 2009, entram nesse rol Issy-les-Moulineaux, em Paris (França), Turim (Itália), Águeda, (Portugal) e Gotemburgo (Suécia). Desde sua criação, a ENoLL vem ampliando seu raio de ação como uma associação internacional na Europa e no mundo. Segundo números da organização, a ENoLL conta atualmente com mais de 150 membros (living labs ativos) presentes nos seis continentes do globo.
Definição – Como em todo novo domínio científico, a definição de laboratório vivo não é tão claramente uniforme. É o que aponta Tatiane Vietro, pesquisadora bolsista CNPq no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI), no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI). Vietro atua em projetos de PD&I com foco na redução do impacto ambiental de produtos eletroeletrônicos e utiliza a metodologia de laboratório vivo. Segundo a pesquisadora, o conceito mais aceito vem da própria ENoLL, em que os laboratórios vivos são definidos como ecossistemas de inovação abertos, centrados no usuário, com base na abordagem sistemática de cocriação, integrando processos de pesquisa e inovação em comunidades e configurações da vida real.
Em outras palavras, o laboratório vivo envolve cinco elementos: envolvimento ativo do usuário, cenário da vida real, participação de várias partes interessadas (ou seja, o envolvimento de provedores de tecnologia, provedores de serviços, atores institucionais relevantes, usuários finais profissionais ou residenciais), abordagem multi método (combinação de métodos e ferramentas originários de etnografia, psicologia, sociologia, gestão estratégica, engenharia) e cocriação (criação de valor através da interação mútua de atores). “Nessa perspectiva, os laboratórios vivos são os primeiros mercados para produtos e serviços inovadores”, resume Tatiane Vietro, que é também doutoranda na Universidade de Lisboa.
Como funcionam – Os principais atores envolvidos são: empresas, usuários, organizações públicas e pesquisadores. Segundo Vietro, o objetivo principal é alcançar um bom nível de harmonização do processo de inovação entre essas quatro partes interessadas nos ambientes em que os laboratórios estão inseridos. Os laboratórios vivos trazem diversos benefícios. Entre eles estão ganhos de produtividade para empresas e organizações da sociedade civil.
No laboratório, com a identificação de quem são os usuários participantes, é possível mapear pelos dados suas necessidades e preferências. Dessa maneira, prevendo parcerias público-privadas (PPPs), é possível produzir inovações de sucesso comercial. De acordo com Vietro, com a inclusão do cidadão-usuário, a abertura de dados e informações que o laboratório tem acesso e produz é necessária no processo. O objetivo é criar valores sustentáveis, destaca a pesquisadora. “Isso implica desde a escolha de materiais a serem utilizados até a forma de implementação de processos, considerando o impacto social e econômico que a inovação pode causar”, explica. Os valores gerados são de âmbito econômico (redução de custos), de negócios (aumento de valor de mercado para os parceiros) e para o cidadão (ganhos em tempo e comodidade aos usuários em uma inovação nos meios de transporte, por exemplo).
Engajamento – O engajamento dos participantes é fundamental no processo. A ideia é que o usuário passe a agir também como colaborador no desenvolvimento de novas políticas públicas, produtos e serviços. Entre os desafios, segundo Vietro, o maior deles é que “muitos cidadãos esperam um governo “confiável” para se engajar”, aponta. Essa dificuldade pode ser enfrentada por meio da comunicação eficiente sobre os benefícios reais para o cotidiano das comunidades, estreitando laços entre todos os atores.
Iniciativas na cidade holandesa de Eindhoven, uma região de terras agrícolas pobres e recursos de matéria-prima escassos, são exemplos de grande colaboração entre atores. “As pessoas tiveram que gerar uma renda: a única maneira de sobreviver e crescer era fazer isso juntas”, aponta a pesquisadora. “Como os desafios de hoje são considerados complexos e interconectados, a cooperação se torna ainda mais importante”, assevera.
Laboratórios vivos no Brasil – No Brasil, destacam-se o Living Lab Habitat, que estrutura uma rede de projetos sociais, de educação, de pesquisa & desenvolvimento e de extensão universitária em Vitória, no Espírito Santo.
O Amazonas Living Lab é outro exemplo de laboratório vivo que integra empresas e setor público na cooperação com organizações de pesquisa e usuários dirigidos a aumentar o valor econômico, ambiental e social relacionados à cultura de inovação tecnológica e educação ambiental na região amazônica.
O Instituto de Desenvolvimento e Tecnologia (INdT), antigo Instituto Nokia de Tecnologia, que por meio de isenções fiscais estabelecidas pela Lei de Informática (8.387/91) desenvolve pesquisas e produtos para a redução de custos e maior eficiência nos processos.
Há ainda o Núcleo de Cidadania Digital (NCD), um programa de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) que oferece produtos e serviços para a comunidade a fim de promover a inclusão digital e estimular o exercício da cidadania por meio de ferramentas tecnológicas. Com apoio da Petrobrás e da Prefeitura de Vitória, faz a interação entre a Universidade e a sociedade civil.
O HIDS pode servir como um território de testes de tecnologias e/ou produtos que auxiliem no cumprimento dos 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) da ONU, com forte potencial para encomendas específicas de governos dos diversos níveis. Esta abordagem permite avaliar o desempenho de um produto/tecnologia a partir da sua adoção potencial pelos usuários de determinado território e fazer projeções para sua adoção em termos globais. Alguns exemplos de aplicações já estão sendo construídas a partir de experiências na Unicamp, juntamente com parceiros como a SANASA, a CPFL e o Centro Von Braun. Dentre esses temas estão: água, energia, alimentos, avaliação de sustentabilidade, direitos humanos e monitoramento de dados.
Considerando que esse é um conceito chave no planejamento do HIDS – juntamente com o desenvolvimento sustentável – iniciamos a publicação de uma série de reportagens sobre o tema dos laboratórios vivos, buscando explorar as possibilidades de criar esses laboratórios no território do HIDS, explorando as sinergias entre as instituições já presentes nesse território
Por Mariana Garcia de Castro Alves e Patricia Mariuzzo